terça-feira, 15 de outubro de 2013

Sobre não desistir do outro


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BERND JOSEF ROSEMEYER 14/10/2013
Há 17 anos, um alemão-brasileiro dedica-se ao acolhimento jovens em situação de moradia de rua num sítio em Maranguape. Oferece amor e carinho. Em troca, quer apenas que todos sigam caminhos de paz
Bruno de Castrobrunobrito@opovo.com.br
EVILÁZIO BEZERRA

O alemão espichado e de sorriso fácil aportuguesou o nome. Atende por Bernardo. Seu Bernardo, para os garotos da ONG O Pequeno Nazareno e desconhecidos. Também abrasileirou a alma, ao ponto de sentir-se filho daqui. E “cearencizou” o sotaque. Fala arrastado, cantando que nem a gente. Mas deixa escapar a origem quando solta carregados erres do idioma natal.

Tem quase 20 anos que aprendeu a ser ponte entre esses meninos e as famílias (quase sempre desestruturadas) deles. São 17 anos tentando retirá-los do “talvez” para apresentá-los ao “para sempre” que a vida oferece. Longe da violência do asfalto. Do frio da madrugada ao relento. Da “lombra” da droga. Da conturbação dos presídios. Da democracia da morte.

Bernardo cultiva hábitos simples numa pequena edificação no sítio onde acolhe os jovens. Vive em função deles. Não se enxerga fazendo outra coisa a não ser transformá-los em recomeços. Ensina-os a não desistirem de si. Do outro.

No Brasil, chegou em 1986. Dez anos depois, criou a ONG. Comeu rapadura no sertão. Viu muitos dos “seus” meninos sucumbirem. Ao vício e ao anoitecer. Viu muitos não amanhecerem. Mas daqui não pretende sair. “A gente precisa aprender a viver com uma certa dose de dor. Mas não pode se deixar abater”, ensina.

O POVO - Como se deu a sua vinda para o Brasil?
Bernd Josef Rosemeyer - Sou de família pobre. O meu pai trabalhava muito numa gráfica e minha mãe era responsável por procurar clientela. Trabalhei em tudo lá: numa fábrica de gravatas; nas estradas, limpando mato... Mas tive uma infância feliz. Na adolescência, a Alemanha teve movimentos contra a energia atômica, pelo pacifismo. Comecei a participar deles. Aí, surgiu uma catástrofe na África. Milhares de pessoas morrendo de fome. Eu tinha uns 22 anos e despertei pras injustiças sociais. Comecei a mobilizar pessoas da minha comunidade. Mendigava nas ruas, pedindo dinheiro pra cavar poços pra essas populações. Foi o despertar de uma vocação. Eu tinha vontade de trabalhar na Índia. O problema era que a Madre Teresa de Calcutá não tinha e-mail nem telefone... (risos) Mas eu conheci uma pessoa que estudou teologia aqui. Era franciscano. Me interessei e entrei na Ordem dos Franciscanos. Vim porque entrei pra uma ordem cuja província fica aqui no Nordeste. Aí, comecei a estudar teologia e filosofia em Recife. Foi lá que, pela primeira vez, vi crianças morando nas ruas. Vim pra cá (Brasil) em 1986 e vi isso em 1987.

OP - No seu povoado não existiam meninos na rua?
Bernardo - Não. Na Alemanha, existem alguns adolescentes só em algumas cidades de maior porte. Mas criança mesmo, não. Eu nunca tinha visto, por exemplo, uma pessoa mexer no lixo para comer. Uma das primeiras coisas que vi quando aqui foram pessoas na frente dos restaurantes procurando comida no lixo.

OP - Foi esse choque que te deu a ideia de criar O Pequeno Nazareno?
Bernardo - Não. O que me deu a ideia foi mais tarde. Em Recife, eu conheci a realidade. A primeira criança que encontrei foi na Praça do Carmo. Lembro como se fosse hoje. Passei e vi ele cabisbaixo e a perna sangrando. Voltei. Disse: “rapaz... tu não tá vendo a tua perna sangrando?”. Ele ficou calado. Eu disse que íamos pra farmácia. Fizemos um curativo até bonito. Em geral, quando a gente recebe alguma coisa, diz “muito obrigado”. Ele, nada. Aí, ele voltou pra praça. Eu fiquei curioso. Interessado. Apavorado. Pensei: vou ter uma missão e conhecer essas crianças.

OP - Recife tinha muita gente morando nas ruas naquela época?
Bernardo - Você encontrava adulto, criança, adolescente, tudo misturado. Eu morava em Olinda e ia ao centro de Recife pelo menos três vezes por semana. Lembro de muitas cenas. De uma vez que eles me convidaram para jantar. Tinha uns 20 meninos. Na frente do restaurante, tinha um tambor. E tinha resto de comida, principalmente ossos de galinha. Com fiapos ainda. Um dos meninos pegou com a mão e disse assim: “olhaí, seu Bernardo, vamos jantar!”. 

OP - Já que era uma coisa que não fazia parte da sua realidade, o senhor não teve medo?
Bernardo - Medo, não. Não me sentia em momento algum ameaçado. Policiais falavam: “se afaste desses meninos. Aqui é perigoso. Você não sabe o que está fazendo”. Eu não me sentia ameaçado. Mas, numa retrospectiva, sei que corria riscos. Eu não sentia medo porque sabia que era a minha tarefa. Mas fiquei frustrado porque não atinava alguma possibilidade de ajudar as crianças. Eu ia quase toda noite, voltava (pro convento) e elas ficavam na rua. Então, falei com o responsável (pelo convento): “quero abandonar essa experiência”. Isso foi em 1987.

OP - Pouco tempo de convívio com os garotos, já que encontrou o primeiro no mesmo ano...
Bernardo - É. Naquela época, eu queria uma vida franciscana radical. Aí, eu falei com o provençal que queria fazer parte de uma comunidade. E tinha uma pequena comunidade aqui, em Ipaporanga. O frei João queria viver sem dinheiro. Os superiores diziam que era impossível. E a pessoa que não ganha dinheiro faz o quê? Trabalha. Passei dois anos lá. Fiquei até 1989. Emagreci. Tive pano branco e falta de vitaminas. Comia a comida típica da roça: rapadura com água.

OP - Não gostava?
Bernardo - Ahhhh, gostava! A fome é o melhor tempero! Eu abarcava tudo! Trabalhei na roça, na broca. Durante os dois anos, tive contato com sindicatos rurais. E esse trabalho eu gostava. Mas me senti despreparado. Tinha começado teologia, mas não dava pra realizar um trabalho prático. Por isso, abandonei. E parti pra cidade grande. Fortaleza. Vim pra estudar Direito. Fui parar lá no Otávio Bonfim...

OP - Sozinho?
Bernardo - Não! Porque tinha uma comunidade religiosa do convento. E eu ainda estava ligado à Ordem Franciscana. Comecei a me engraçar pelo Direito. Mas lá vem a primeira barreira: o vestibular. Passei na segunda tentativa. Os estudos não foram desafiadores. Então, passei a ter tempo. E lembrei da época em Recife. Quis conhecer a realidade das crianças daqui. Tinha muitas. Você encontrava no Coração de Jesus, terminais. Ainda existia aquela coisa de colocá-los nas Febens.

OP - Um clima violento o das ruas, suponho...
Bernardo - Algumas crianças e adolescentes que conheci não sobreviveram. Lembro do Marcelo. O pessoal do IML não teve a decência nem de fechar o corpo. Deixaram aberto do pescoço ao umbigo. A cova era rasa de não chegar a um metro. E foi sem caixão. Jogaram. Eu fiquei escandalizado. Também com o apedrejamento do Chaves, na Catedral, pelos próprios colegas. Ele tinha feito um assalto e não partilhou. Houve aquele frenesi brutal, mortal, sanguinário. Jogaram ele lá no Paço Municipal, naquele riacho. Foram muitas mortes. Mas o episódio que mais me marcou foi o do Augusto. Ele foi bem dizer a causa de eu fundar O Pequeno Nazareno. Foi a primeira criança que me pediu ajuda. Foi em 1991. Eu conhecia uma pessoa da Paróquia do Otávio Bonfim. Pedi pra que acolhesse o Augusto na casa dela. Ele ficou lá. Mas por pouco tempo. Não aguentou. Voltou pra rua, cheirava cola. Naquela época, graças a Deus, essa praga do crack não tinha entrado na vida dos meninos. Aí, eu recebi um telefonema. Era do hospital. Na mesma noite em que ele saiu, se envolveu numa briga. Quebraram uma garrafa de vidro, pegaram os cacos e começaram a rasgá-lo de cima para baixo. O médico falou que estava tudo rasgado, até as entranhas. Ele foi operado e sobreviveu. Mas foi a gota d’água. Foi nessa época que recebi um telefonema do meu irmão. Ele disse que tinham pessoas na Alemanha que queriam me ajudar. Eu disse que queria ajuda para uma casa. Compramos a casa na rua Senador Alencar e fundei O Pequeno Nazareno. Depois, veio o sítio (em Maranguape).

OP - Fundou sozinho?
Bernardo - Sou fundador de duas coisas que considero importante: o Pequeno Nazareno e a Campanha Nacional Criança Não é de Rua, lançada em 2005, no Congresso. Mas o início foi o mais difícil. Porque tudo começou pela indignação. Por não aceitar termos que conviver com crianças de 10 anos que afogam seus sonhos em cola de sapateiro...

OP - Era mais complicado lidar com a realidade do começo, por conta do choque social, ou é mais difícil hoje?
Bernardo - Não é um choque social. O povo brasileiro eu sempre apreciei. Sou brasileiro, por mais estranho que possa soar. Mas eu me choquei com a falta de iniciativa junto a uma calamidade de crianças vivendo nas ruas. E a gente sabe que a alternativa delas é o cemitério ou a cadeia. E aceita deixá-las nas ruas. Estamos perdendo a capacidade de conviver de forma fraterna e solidária. Essas são opções que não deveriam constituir alternativas de vida. E O Pequeno Nazareno é uma terceira alternativa.

OP - Cada jovem que chega aqui tem uma desestruturação familiar e vícios químicos e de caráter. Como é fazer esse diagnóstico?
Bernardo - Esse é o desafio. Porque você vive com pessoas marcadas pela experiência da rua. Pela apartação social. Pela degradação pessoal. Você encontra crianças que internalizaram as regras das ruas. Porque as ruas têm regras. E você tem que se submeter a elas pra sobreviver. Só que as regras são desumanas. É a lei do mais forte. E o mais forte é o mais ignorante e desrespeitoso. A rua é um lugar de morte. 

OP - É possível tirar a rua de dentro da criança?
Bernardo - É pela convivência que você constrói o contraponto. A primeira coisa é inserir na escola. Temos aqui uma reconhecida pelo Estado. Uma escola que se adequou para corresponder às dificuldades dessas crianças. Eles têm, inclusive, o (ensino em) tempo integral. A segunda coisa é dar uma estrutura que eles não têm. Leva certo tempo até eles se acostumarem a cumprir horários. Depois é o mais importante: criar novos referenciais. Na rua, o referencial é o traficante. Aqui, a gente conta histórias sobre Madre Teresa de Calcutá, (Nelson) Mandela, (Mahatma) Gandhi... Temos que criar referenciais positivos. E isso não se resolve numa tacada. Não é uma corrida de 50 metros. É uma maratona. Eles não conseguem tirar a rua de dentro deles do dia pra noite. Isso requer tempo, espaço adequado. Os meninos de rua também gostam de qualidade.

OP - O senhor disse que muitos jovens que conheceu morreram. Hoje, quando recebe uma notícia dessas, como lida com isso?
Bernardo - Você tem que encontrar formas de lidar com tragédias. Sem a ajuda de fora, uma criança de rua não consegue escapar da morte ou do presídio. A gente não pode cair nem se acabar.

OP - O senhor tem ideia de quantos meninos já salvou?
Bernardo - Acho que umas duas centenas, pelo menos, já passaram aqui. Tenho muito orgulho. Tenho profissionais aqui que já foram assaltados com cano de revólver na cabeça durante visita às famílias e, ainda assim, não desistiram.

OP - O senhor chegou a sofrer algum tipo de violência?
Bernardo - Algumas vezes já fui assaltado.

OP - E, ainda assim, não desistiu...
Bernardo - Não! Porque o Governo precisa da gente. Minha ideia inicial era a criança passar meses aqui e retornar pra família. Mas ninguém consegue sair de forma definitiva das ruas em pouco tempo. Depois, pensei que, quanto mais tempo aqui, melhor. Quebrei a cara. As crianças têm um amor tão profundo por suas famílias que é incrível. O que eu mais aprendi foi valorizar o laço deles com a família. Sou o aluno deles. A gente pode oferecer oportunidades, mas recebe mais de volta.

OP - Na época da Ordem, o senhor chegou a dormir na rua?
Bernardo - Não. Nem vou fazer. Não seria muito autêntico. O que faço questão é de ir às favelas uma vez por semana. Se não tiver esse contato, perco a profundidade da reflexão. Uma vez, levei um menino pra visitar a família porque queria saber onde ele morava. Eu, quando levo alguém pra me visitar, mostro: “aqui, eu estudei; aqui, eu fiz o meu curso de profissionalização...”. Mas ele, não. Ele dizia: “aqui, seu Bernardo, mataram meu primo. Ali, ameaçaram meu irmão”. Aí, você vê os referenciais da vida dessas crianças...

OP - Te cansou em algum momento lidar com tanta tragédia?
Bernardo - Não. É minha sina. O meu lugar no mundo é este. É a realização da minha vida. Não sei fazer outra coisa.

OP - E como o senhor qualifica o que faz hoje?
Bernardo - (silencia por sete segundos, pensando) Eu sou uma das pessoas responsáveis por fazer uma diferença na vida de crianças e adolescentes que, sem essa mão estendida, não teriam possibilidade à vida. Mas a gente tenta se aperfeiçoar, nunca está satisfeito. A gente não pode cegar em procurar essa perfeição. Então, eu ainda procuro. A perfeição no nível humano você nunca vai alcançar. Só pode melhorar. Pode se tornar mais compassivo, amoroso..

OP - Como o senhor avalia as políticas públicas pra esses meninos?
Bernardo - Sei que somos um grãozinho de areia. Por isso, idealizei uma equipe interinstitucional. Em 2005, pensei em nível nacional uma grande rede. Foi quando surgiu a Campanha Criança Não é de Rua, que começou com uma entidade (O Pequeno Nazareno) e, depois de lançada no Senado, aderiram mais de 600. Hoje, é a maior rede que presta serviço ao jovem em moradia de rua.

OP - E surgiu justamente pelo senhor entender que falta amparo do poder público...
Bernardo - Eu tinha um objetivo: termos uma política objetiva que, até dado momento, não existe. A campanha foi encarregada pela Secretaria Nacional dos Direitos Humanos de conduzir um processo para a elaboração dessa política. Estamos conduzindo. Deve ser entregue ano que vem.

OP - Já dá para dizer onde o Governo mais peca?
Bernardo - Muitas das crianças estão há muito tempo nas ruas. Não é por uma semana nem duas. São dois anos, três anos a maioria. Mas pergunte a elas se um assistente social visitou a família dela no sentido de analisar a situação e descobrir as deficiências que a levaram a tomar a decisão de ir para as ruas. Não é à toa que uma criança e um adolescente toma uma decisão dessas! Tenho uma percepção do que representa o verdadeiro sentido dessas crianças. Pra mim, ela quer chamar a atenção, inconscientemente, para a situação em que a sua família vive. O fato é que o Governo não investe nas famílias ao ponto de viabilizar o retorno para a referência familiar e comunitária. No fundo, a criança não quer estar na rua. O sonho dela é estar com a família. Nós temos que ser intermediadores. Mas a gente sabe que algumas famílias não têm condição de receber a criança/adolescente. Aí, vai pra autonomia. Não tem jeito.

OP - Cada menino que chega aqui é um mundo que vocês precisam descobrir. Como suprir o déficit de amor de uma vida inteira?
Bernardo - Muito tempo. Atenção. Respeito. Eu fico pasmo com a facilidade que a criança fala sobre os detalhes mais escabrosos de sua vida antes de chegar ao Pequeno Nazareno. É a grande experiência da criança: essa resiliência. Talvez, as pessoas percam isso quando entrem na adolescência e fase adulta. Mas as crianças são muito receptivas, tanto para o lado ruim quanto para o lado bom. É nesse foro mais íntimo que elas tomam as decisões delas. Temos aqui uma assistência de alto nível. Mas quem decide é ela sobre o rumo que a vida vai levar. Isso, pra mim, era uma frustração. Hoje, é apenas uma resignação. Porque o ser humano já foi concebido assim.

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